O Demônio das Sombras

Nada melhor que um conto que fale da Sexta-Feira 13
Para uma Sexta_Feira 13
 

Há quem considera o medo do escuro algo irracional, que é um medo aceitável apenas no mundo infantil, cuja imaginação fértil floresce num campo tão propício quanto os lugares escuros, como, por exemplo, debaixo da cama, dentro do armário ou nos longos corredores das casas antigas.
Mas, se as crianças ainda são puras, desprovidas de maldade e a mente ainda não está poluída pelos monstros e perversidades existentes no mundo real dos adultos, por quê, então, elas imaginam que nas sombras ocultam-se os objetos que devem ser temidos?

Pois que não é a sombra ou a escuridão que assusta, que causa medo e, em alguns casos, pavor. Mas sim do que elas ocultam... e só se oculta aquilo que realmente existe.

Janete foi uma dessas crianças que tinham pavor do escuro. O pavor dela era tão descomunal, que se sentia apenas um pouco mais segura se dormisse entre os pais, na cama deles, e que os abajures se mantivessem ligados a noite toda, e a luz do lustre fosse desligada apenas depois de ela pegar no sono.

Diziam que ela tinha a imaginação muito fértil, capaz não apenas de criar imagens ilusórias, mas também sons ilusórios. Janete não apenas via formas, alguma humanas, outras indefinidas, pelas sombras da casa – ou das ruas, se fosse a ocasião – mas ouvia-lhes os ruídos e os sussurros também.

Passou pelas mãos de meia-dúzia de profissionais especializados em tal transtorno mental, sem sucesso. O que Janete aprendeu foi a esconder sua capacidade de ver e ouvir o que mais ninguém via ou ouvia, para conseguir se livrar das consultas e terapias que se tornavam cada vez mais aborrecidas. Também se cansou de ser tratada como uma anormal por quem lhe conhecia a estória.

Quando tudo isso se tornou insuportavelmente desagradável para ela, começou a parar de temer os sons e as imagens do escuro, pois que estes não faziam nada além de aparecer para ela, ao passo que os tratamentos e os conhecidos a incomodavam e, alguns, até a discriminavam!

Quando teve idade e esperteza suficientes para não mais contar suas visões, e coragem suficiente para subjugar o medo, seus pais, educadores e psiquiatras tomaram isso como algo natural do amadurecimento, aliviados de que ela havia superado o medo infantil com a idade, afinal Janete estava virando uma mocinha e não era mais um bebê cheio de imaginação.

Mas isso foi há muito tempo. Janete não era mais uma mocinha. Era uma mulher madura, no esplendor e beleza proporcionados após os trinta anos. Não tinha mais tanto medo do escuro e nem dormia com as luzes acesas. Ela descobriu, ao longo dos anos, que nada disso adiantava, pois os Demônios estavam sempre ali, estando claro ou escuro, e não iam embora em consideração aos seus medos.

Muito pelo contrário.

Eles esperavam o dia em que viriam para levá-la ao Mundo das Sombras, o mundo a qual ela pertencia e nem fazia ideia disso.

Apesar de ser uma mulher adulta, Janete ainda preferia andar sob a luz. Ela não temia mais as sombras como antigamente, quando era criança, mas ela matinha a prudência quanto a isso. Lugares escuros e ermos na cidade ocultavam demônios terríveis que não existiam no interior, praias ou campos. Eram eles que suscitavam não só o medo, mas também a maldade inerente do ser humano. Aquele que vibrasse na mesma faixa de sintonia que eles, facilmente se deixava levar por sua lábia.

E eles deixavam...

Olhando de esguelha, Janete via as ondulações pelos muros e calçadas onde a luz não insidia. Tentava controlar o calafrio que subia por sua espinha. Sabia que quanto mais ativas eram essas movimentações nas sombras, mais era possível de que algo muito ruim acontecesse. Sempre teve a sorte de não presenciar nenhum crime, mas soube de vários que haviam acontecido nos locais onde presenciara tais manifestações intensas.

A noite estava chuvosa e muito fria, de forma que apenas os obrigados andavam pelas ruas. E Janete era um desses obrigados.

Era véspera do Dia dos Namorados e as lojas do shopping funcionaram muito além do horário normal. Janete era a gerente de uma fina loja de presentes e, quando a loja encerrou o expediente, o ônibus que costumava pegar, que a deixava em frente à entrada do seu prédio, já havia parado de circular, de modo que fora obrigada a pegar um outro que fazia um percurso diferente. Ela precisava andar até três quadras para chegar em casa e já passava da 1 hora da manhã. As ruas estavam completamente vazias. Nem carros, nem táxis eram avistados, embora fosse uma sexta-feira.

Onde Janete morava era tranquilo, com nada alarmante a acontecer ou com que se preocupar. E nos dias de hoje, andar por ruas desertas à noite não era mais perigoso do que durante o dia e no meio da multidão. Mas as movimentações nas sombras davam-lhe arrepios e mau augúrio como nunca antes sentira.

A moça, instintivamente, apertou os passos e o guarda-chuva em suas mãos. Precisava controlar o seu pânico, que dava mostras de vir à tona, depois de muitos anos. Faltavam apenas duas esquinas para chegar até o seu prédio. De repente, um frio enregelante fê-la parar abruptamente. Era como se a temperatura tivesse desabado a graus negativos de um segundo a outro.

As sombras do muro avançaram adiante dela, encorporando-se, tomando a forma humana sem abandonar a aparência de sombra. E, pela primeira vez em sua vida, Janete vislumbrou os olhos do Demônio, que a fascinaram e aterrorizaram ao mesmo tempo. Eram olhos grandes e repuxados, portadores de luz própria e apenas isso, pois não possuíam íris ou pupilas.

O Demônio da Sombra estendeu a mão escura e etérea, tocando o rosto apavorado de Janete. Foi um choque para ela: além de ver e ouvir, também podia sentir! Aquela constatação foi tão aterradora que ela sequer percebeu com que solenidade a criatura a tocava. Era quase uma carícia.

Janete se sufocou e engasgou, dando dois passos para trás e jogando no chão tudo que tinha em mãos: guarda-chuva e bolsa. Desviou-se da sombra demoníaca e correu o máximo que conseguia sobre os saltos altos do escarpam que usava. Em seu desespero, não percebeu para onde ia, entrando numa rua estreita e erma entre dois prédios enormes.

O Demônio nada fez. Permaneceu parado, apenas observando a fuga da clarividente. Ele estava pesaroso, pois deveria fazê-la passar pelo pior momento de sua vida. Gostaria de poder poupá-la de tal sofrimento, mas era a única forma para ela fazer a passagem para as Sombras e para, finalmente, a sua posse. Afinal, ela pertencia a ele e ao mundo dele.

Em seu pavor, Janete não percebeu que havia se enfiado numa ruela que só não era completamente escura porquê uma lâmpada, num poste precário, tentava iluminar alguma coisa por ali. Apenas voltou a si quando viu e ouviu as movimentações nas sombras com tal intensidade que jamais presenciara até então. Parou, novamente estarrecida, quando dois vultos avançaram em sua direção. Apenas se deu conta de que estes eram de carne e osso e bastante humanos quando a agarraram com violência e a arrastaram para dentro do vão de um dos prédios, arrancando suas roupas com brutalidade. Talvez fosse sorte que a sua mente estivesse tão embotada e confusa, pois não conseguia atinar com o constrangimento que sofria nas mãos daqueles dois homens. Somente pensava, via e ouvia as Sombras, até que a dor contundente no centro do seu corpo a trouxe de volta àquela realidade, apenas para ter a infeliz e total noção do mal que lhe ocorria. E outras dores mais se seguiram em outras partes de seu corpo, pelos dois homens que a estupravam ao mesmo tempo e feriam a sua carne violentamente.

Quando Janete pensou ter atingido o seu limite do suportável e que morreria nas mãos daqueles canalhas, uma abençoada sensação de torpor tomou conta dela, cessando toda agonia e dor. Nem o frio mais sentia. E as Sombras se aquietaram e silenciaram. Uma sensação morna de traquilidade se apossou dela e onde antes a sua carne fora brutalizada, estava sendo compensada por carinhos ternos e calmos, como jamais recebera em sua vida.

Ao abrir os olhos, Janete se deparou com aqueles olhos inumanos de luz, que a fitavam de forma que pareciam enxergar a sua alma. E, desta vez, apenas sentiu o fascínio que eles exerciam sobre ela. Finalmente soube que fazia parte desse Mundo das Sombras e do Demônio que fundia seu corpo escuro e etéreo ao dela.

E ela também se tornou escura como uma sombra, e etérea como o ar.
 

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