Sob o olhar do cão


Acordou no meio da noite com seu cachorro latindo, pedindo por comida e atenção. “Maldito cão!" foi o que passou pela cabeça dela enquanto se levantava e procurava pelos chinelos em meio à escuridão. Ultimamente seu cachorro havia lhe enchido a paciência muito mais do que quando jovem. Agora velho e cego, muito de sua alegria se esvaira; embora continuasse dócil e amável como sempre fora, não tinha mais o hábito de pular e sair correndo toda vez que ela entrava em seu quintal.

Agora passava o dia inteiro sentado em frente ao batente da porta que dava acesso ao seu lar, implorando por qualquer coisa que o distraísse de sua velhice e da inevitabilidade da morte. Ellie abriu o armário da cozinha e retirou um saco de pão velho e amassado. Repartiu o pão em pequenos pedaços mecanicamente, um ritual ao qual já estava acostumada. Olhou para o relógio do micro-ondas enquanto jogava os pedaços em uma tigela e ele lhe mostrou que eram três e trinta e três da manhã. “Droga! Devia esganar esse desgraçado!" foi o seu pensamento antes de abrir a porta.

O luar iluminava o quintal com sua pálida luz azulada, como se houvesse uma gigantesca bola de neon celestial. Ellie esperava ver seu cachorro em seu lugar usual, logo em frente à porta, onde ela até havia colocado uma almofada, mas ele não estava lá. Ela vasculhou o quintal com o olhar e descobriu seu cachorro sentado ereto no centro, com o rosto virado para o canto oposto. Mesmo com a visão parcialmente nublada pelo sono Ellie percebeu que aquela não era uma posição normal para qualquer animal, muito menos para um cão velho. Era… reta demais, humana demais. Ele também mal se mexia, parecia até que não respirava, mas naquela semi-escuridão ela concluiu que seria difícil enxergar qualquer movimento de seu corpo.

Mesmo assim, era um comportamento anormal que ele estava apresentando. Ellie deu dois passinhos inseguros e timidamente disse: – Charles…? Trouxe um lanchinho para você. A princípio ele não reagiu, mas depois de um tempo ele lentamente virou o corpo. Charles estava com uma expressão estranha, apática, que mesmo cego ela nunca havia visto ele ter. Parecia que não estava realmente ali, que estava em algum tipo de transe. Ele só virou metade do corpo e parou todo retorcido em uma posição que não tinha como ser confortável. Então ele lentamente levantou a cabeça e olhou para ela.

Ellie não sabia como, mas tinha certeza que o olhar cego de Charles estava fixo no rosto dela. E depois ele… sorriu. Não era bem um sorriso; ele simplesmente colocou a língua para fora, como todo cão faz. Mas Ellie tinha certeza de que ele estava sorrindo e olhando para ela, quase como se soubesse de alguma coisa. Subitamente, Ellie ficou assustada e largou a tigela no chão enquanto voltava para dentro de casa. Trancou bem a porta que dava acesso ao quintal e voltou para cama. "Está sendo tola! Não há nada de errado com ele!” foi o que ela repetidamente se forçou a pensar, mas o sono não voltava.

A imagem de seu cachorro negro sorrindo com aqueles olhos leitosos voltados para ela estava queimada em sua mente e ela não conseguia ver mais nada.. Só foi ficar tranquila mais ou menos uma hora depois, quando ouviu o som de Charles mastigando o pão. "Está tudo bem, ele só estava com fome” foi seu último pensamento antes de adormecer profundamente.


******

Na manhã seguinte Ellie acordou se sentindo muito mais calma, apesar do cansaço. Tinha certeza de que estava tudo bem com seu cachorro; ele só estava passando por uma fase difícil. Ela foi até o quintal para retirar a tigela de pão e talvez brincar um pouco com ele.

Chegando lá, novamente ele não estava em seu lugar de costume. A tigela continuava onde ela a havia deixado, mas não conseguia ver Charles em parte alguma. “Ele deve estar em algum lugar nos fundos, se protegendo do sol”. Continuou a procurar por todos os cantos enquanto pegava a tigela. Foi então que uma súbita e aguda dor subiu pela sua mão, tão repentina que a fez largar a tigela, que se espatifou no chão. Ellie olhou para o local dolorido e viu um inchaço começando a se formar ao redor de um minúsculo ponto preto em sua mão. Então olhou para a tigela quebrada e viu centenas de formigas correndo desesperadas ao redor dos cacos e dos restos de pão. “Mas… ontem eu tenho certeza que o ouvi mastigando…”


Houve um único latido vindo lá do fundo. Lá, Charles estava nas sombras, quase impossível de se ver a não ser pelo branco dos olhos. Ele arfava ruidosamente, e Ellie podia ouvir a saliva pingando de sua língua. Novamente, aquela sensação de estar sendo observada pelo seu cão cego se apoderou dela. Ela começou a se sentir nauseada e quis ir embora. O arfar dele parecia muito com uma risada e os olhos… Bem, estavam muito brilhantes. Muito mais do que ela se recordava. Antes de ela fechar a porta atrás de si, Charles latiu mais duas vezes, uma logo atrás da outra, como se estivesse enviando um “tchau, tchau”.

Ellie não visitou Charles novamente pelo resto do dia. No dia seguinte, antes de ir trabalhar, ela deixou um pouco de comida ao lado da porta, mas não o viu em parte alguma. Notou, porém, que havia chumaços de pelo aqui e ali. “Deveria levá-lo ao veterinário. Talvez ele esteja com alguma doença". O trabalho exigia que ela se concentrasse de tal maneira que a fez esquecer tudo sobre seu cachorro. Quando voltou para casa no final da tarde, Ellie já não pensava mais no estranho comportamento de Charles. – Ellie? Ela levou um susto quando ouviu alguém lhe chamando por trás, mas era apenas seu vizinho, Edu. Ele estava com uma cara bastante consternada. – Nossa Edu, você me assustou! O que foi? O que aconteceu? – Ellie, você viu o Tomi?

Ele sumiu de casa já faz quase dois dias. – Ah, desculpe, Edu, mas não o vi não. Ele não costuma sair de casa de vez em quando? – Sim, mas não por tanto tempo. Se você o vir, liga direto para esse número, ok? Ele estendeu uma folha de papel com uma foto impressa do gato preto e um número de celular. Embaixo da foto estava escrito: "Você viu esse gato? Favor ligar para o número abaixo caso o tenha avistado”. – Pode deixar Ed. Boa sorte nas buscas. – Brigado. Enquanto Edu saía para interrogar os outros vizinhos, o namorado de Ellie, Marcos, chegou. Ele estacionou seu carro vermelho em frente à casa dela e desceu. – Ei querida, como está? – ele perguntou depois de um breve beijo. – Mais ou menos.

Hoje foi um dia estressante. Importa-se de a gente pedir alguma coisa ao invés de cozinhar? – Não, não, sem problema. A noite transcorreu normal. Eles comeram comida chinesa e assistiram comédias bobas na TV. Charles também voltara a ser o que era antes. Até mesmo voltou ao seu lugar especial em frente ao batente da porta. Ellie então pode relaxar e ter um pouco de paz. Quando era quase meia-noite, os dois subiram para se deitar.


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Enquanto Ellie e Marcos faziam amor, Charles começou a choramingar. A principio isso não a incomodou, mas o ganido foi ficando mais e mais alto até que ela não conseguiu mais aguentar.

- Marcos, sai, eu tenho que ver o que há de errado com o Charles.

- Ele só quer comida, El, você sabe disso- Ele disse enquanto arfava.

- Mas eu tenho que ver assim mesmo. Depois a gente termina, Marcos. Agora sai, por favor.

Com um bufo, Marcos saiu de cima dela. Ellie colocou um roupão por cima do corpo e foi até o quintal. Charles novamente estava no centro do quintal, mas desta vez estava inquieto. Ele andava para lá e para cá em um eterno “8” e a cada volta soltava um choramingo agudo. Assim que ela saiu da casa, porém, ele parou de ganir e começou a rosnar. Eram rosnados curtos mas que iam aumentando de intensidade. Quase como se ele fosse gritar a qualquer momento. Ellie não conseguia fazer nada, estava hipnotizada pelo andar de seu cão. Charles parou no meio de uma volta e a encarou.


Novamente aquele olhar cego, novamente aquele sorriso. Ellie não conseguia ver mais nada. A imagem de seu cão sorridente ocupava quase tudo em sua mente. Teve uma hora que ela pensou ter ouvido “Meu bem? O que aconteceu…?” mas logo a imagem de Charles era tudo o que importava. Seu sorriso era tudo o que importava. Então ela acordou.

Estava deitada sozinha no quarto, ainda de roupão e meio molhada de alguma coisa pastosa. O quarto estava escuro, de modo que ela não conseguia ver o que era aquela coisa. Cheirou-a e sentiu o cheiro de salíva canina, o que lhe deu certo alívio, apesar de não se lembrar de ter brincado com Charles. Ela nem sequer se lembrava de como havia chegado alí. Chamou por Marcos, mas não ouviu resposta. “Ele deve ter ido para casa depois que eu dormi” pensou. Foi então que ouviu uma batida muito forte em sua porta da sala. Olhou pela janela do quarto e viu dois policiais parados em frente a sua casa, esperando impacientes que ela os atendesse. Ellie enrolou bem o roupão ao seu redor e abriu levemente a porta.

- Posso ajudá-los? – Senhora recebemos reclamações de gritos vindos dessa residência. A senhora mora sozinha aqui? Tem mais alguém na casa? perguntou um dos policiais com uma cara fechada e pouco amigável.

- Sim, moro sozinha aqui. Meu namorado Marcos veio essa noite mas já foi embora…
Foi então que Ellie olhou para a rua e viu, bem ali em frente a sua casa. O carro de Marcos ainda estava lá. Os policiais se entreolharam frente a hesitação de Ellie, e o outro deles falou:

- Senhora, se não se importar, gostaríamos de dar uma olhada em sua casa… meu Deus!! Enquanto falava o policial já abria a porta, permitindo um pouco da luz da rua iluminar Ellie. Ela se olhou e percebeu que o líquido pastoso que cobria metade do seu roupão e boa parte de seu corpo era sangue. Ellie entrou em desespero, mas não pode ir a lugar nenhum pois os guardas a prenderam ali mesmo. Ela tentou dizer alguma coisa, mas estava sem palavras. Não sabia de onde vinha aquele sangue, mas com certeza não era seu. Um dos policiais a jogou bruscamente no sofá, fazendo-a cair de bruços. O outro se aproximou de sua orelha e, com uma voz ameaçadora, perguntou:

- Muito bem, agora me diga, onde está esse seu namorado?
Antes que pudesse dizer qualquer coisa, Charles uivou. Um uivo sobrenatural, forte e penetrante, que imobilizou todos na sala. Nenhum cachorro normal deveria ser capaz de reproduzir tal som. Ellie levantou levemente a cabeça e olhou para a sala de jantar.
A porta que dava acesso ao quintal estava aberta. Charles estava novamente parado e ereto no centro. Seus olhos cegos estavam vidrados nela e o maior sorriso que ela já vira em um cão deformava o seu rosto.

Ela esqueceu de tudo. Os policiais, o sangue, nada mais importava. Só o que importava era o sorriso maníaco de Charles. Era tudo o que ela via e era tudo o que precisava. Quando afinal sua mente clareou, Ellie se viu deitada de costas no quintal, com dor em todos os membros do corpo, como se tivesse participado de uma luta. Haviam pedaços de tecido rasgado em sua mão esquerda, um pedaço de papel na mão direita e o luar brilhando forte no céu.

Ela se sentou e examinou o tecido. Parecia ser azul e, entre os pedaços, havia um distintivo. Olhando ao redor, viu várias tiras de tecido do mesmo tipo, todos empapados de sa...Então ouviu um latido curto, quase um espirro, bem atrás dela. Ellie se virou.
Charles estava sentado a meio metro dela. O sangue brilhava refletindo o luar em seu corpo e ao redor da mandíbula. Apenas os olhos não estavam sujos. O branco deles estava mais forte do que nunca. Eram lanternas de pura loucura irradiando de seu pequeno cão.

Ellie não teve forças para correr. Nem sequer teve forças para gritar quando ele avançou, a boca aberta e a baba escorrendo, em direção a sua garganta…


******

No dia seguinte a manchete de todos os jornais locais era: “CHACINA EM CASA NO SUBÚRBIO. MULHER ALIMENTAVA CACHORRO COM PARTES HUMANAS”. Logo abaixo da manchete havia uma foto de Charles, encontrada na mão direita do corpo de Ellie. Na foto, Charles estava sentado ereto, com os olhos brancos voltados para a câmera. Algumas pessoas que leram os jornais naquele dia poderiam jurar que Charles estava olhando para elas. E que estava sorrindo.

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