As Cartas
Não, infelizmente não há como eu voltar atrás. Acredite que sua argumentação muito me impressionou, não só pelo conteúdo, mas também pelo capricho e apuro na organização. Se possível, eu o livraria apenas por isso.
O que mais me cansa a respeito disso tudo, são as súplicas, lágrimas, negações, a dificuldade que as pessoas têm em aceitar um fato consumado tão simples; raramente vejo calma e ponderação, como é o seu caso. Ser incapaz de te dar alguma espécie de tempo extra que seja, me frustra mais que qualquer coisa. São momentos assim em que me pego refletindo sobre meu trabalho e imaginando como seria bom aparecer para as pessoas com boas notícias, visitá-las para uma conversa agradável, acompanhada de um café com biscoitos.
Acredito que você já deva ter visto nos jornais notícias sobre a queda das taxas de mortalidade e aumento da expectativa de vida da população mundial, sem nenhuma explicação convincente, não? Pois é, isso acontece quando estou em meus momentos de introspecção.
Em contrapartida, os problemas também surgem, como o aumento do número de idosos, déficit da previdência, e muitíssimas outras coisas tão tediosas quanto. É isso, em parte, que me faz esquecer os questionamentos internos e voltar a bater o cartão. Já ouvi uma expressão muito popular que diz: nunca reclame do seu emprego, há sempre alguém com outro pior. Isso eu te digo, Eduardo, é verdade, e eu sou o exemplo definitivo.
Morte
30/09/1995
Eduardo
Obrigada por suas palavras. Elas, mais do que em sua primeira carta, me fazem sentir asco de mim mesma por ser tão impotente. Você me pergunta por que afirmo tão categoricamente não poder te poupar e lhe dar mais alguns anos. A resposta é simples e talvez até irônica; porque não posso. Suponha que eu não te leve, o que irá acontecer? Seu risco de vida aumenta e você se torna muito mais vulnerável do que de fato é. Mesmo coisas insignificantes podem te matar, como um susto.
A tendência, entretanto, é de que a sua morte seja a mais violenta possível, não como forma de punição a você, mas a mim, apenas por ter me apiedado e o presenteado com um tempo extra. Um lembrete para que eu continue desempenhando minha função sem interferências, me mostrando que não agir na hora certa tem sempre suas horríveis consequências. É isso, Eduardo. Preciso te levar agora.
Morte
01/10/1995
Eduardo
Esta é a última carta que escreverei a você. Seu prazo expira dentro de cinco dias, a contar de hoje. Aceite tudo e acabemos logo com isso. Não há por que prolongar essa situação. Prometo que farei tudo ser o mais calmo e indolor possível. Será no seu apartamento, de madrugada. Se preferir, deixe as luzes acesas. Se quiser beber, que seja pouco. Não há necessidade de deixar a porta destrancada, eu posso entrar sem impedimentos. Espero que você entenda.
Morte
- E isso foi tudo de incomum encontrado lá?
- Não só isso, mas também as indicações da última carta foram seguidas a risca. A porta do apartamento estava destrancada, as luzes acesas e um copo de uísque pela metade ao lado da cama.
- E qual foi mesmo o resultado da comparação de caligrafia?
- Negativo, a letra dessas cartas não batem com as do desaparecido. Como o senhor pode ver, a das cartas é fina e inclinada, enquanto as de Eduardo são quase ilegíveis, puros garranchos. Deixe-me pegar o exemplo analisado.
O assistente pegou uma anotação de Eduardo encontrada no apartamento e confiscada pela polícia, e a entregou para o delegado. Este as examinou de cenho franzido e disse:
- Realmente, não há a mais remota semelhança entre as duas. Uma coisa me chama a atenção, no entanto, o papel das cartas me parece comum e normal, do tipo pautado e encontrado em qualquer papelaria.
- O senhor está certo. Os peritos chegaram à mesma conclusão.
- E quanto à tinta? – perguntou o delegado, colocando os papéis em cima da mesa e se inclinando para trás na cadeira.
- Também comum, vinda de uma caneta tinteiro disponível em qualquer estabelecimento comercial.
O delegado suspirou de cara fechada. O assistente se encolheu, instintivamente.
- E os registros médicos do rapaz?
- Nada de anormal, ele gozava de perfeita saúde, física e mental.
O delegado inspirou profundamente e soltou o ar numa bufada. Levantou-se e foi até a mesinha perto da porta, se servir de café.
- Quer dizer que temos um desaparecido em circunstâncias misteriosas e as únicas pistas concretas são três cartas cuja procedência não conseguimos descobrir.
- Basicamente – respondeu o assistente, pondo-se de pé.
- E essa “Morte”? Nada a respeito dela ou dele? Quem é? Por que escreveu para ele? Qual interesse teria em escrever tais coisas?
- Sinto muito, delegado – exclamou o assistente, baixando a cabeça.
O delegado pousou a xícara na mesinha e levou as mãos ao rosto. Odiava ser feito de idiota.
- Espere – gritou o assistente subitamente – há algo aqui que passou despercebido, delegado.
O delegado olhou o assistente por alguns instantes, desconfiado de que talvez fosse um fato irrelevante, tornado momentaneamente importante pelo assistente apenas para fazê-lo se sentir melhor. No fundo, dadas as circunstâncias, desejou que assim o fosse.
- Nesse relatório afirmam que nenhuma caneta tinteiro foi encontrada no apartamento – continuou o assistente – e mais a frente é dito que nenhuma das pessoas próximas à vítima entrevistadas pela polícia possuíam uma.
Os dois se entreolharam, numa mescla de espanto e ceticismo. O delegado foi até o assistente e pegou o papel. Depois caminhou até sua mesa, apanhou os óculos e leu o relatório de cabo a rabo. Ainda o releu mais cinco vezes, tentando encontrar erros de qualquer natureza, seus ao ler, ou do policial que redigira o texto. Não os encontrou.
- Não, não posso lidar com isso agora, já é tarde. Muito tarde – começou o delegado, tirando os óculos e esfregando os olhos.
- Se o senhor quiser – emendou o assistente – posso continuar daqui enquanto o senhor vai pra casa descansar.
- Não, não será necessário. Vamos todos embora. É hora de descanso. Amanhã vou ordenar que esse caso seja fechado e arquivado.
Vestiu o casaco e esperou o assistente fazer o mesmo. Deixou-o sair na frente e saiu em seguida, fechando a porta. Nunca mais se ouviu falar daquele acontecimento.
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